"O conceito de violência obstétrica pode ser definido pela ausência de uma palavra apenas: respeito"
- cronicasdeumagravida
- 27 de ago. de 2019
- 6 min de leitura
| Entrevista |
Carla Santos, sócia efetiva da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP)

| Todas as mulheres devem elaborar um plano de parto?
Carla Santos (CS) | O plano de parto é um documento que pode ser elaborado pela grávida, em conjunto ou não com o companheiro ou companheira, mas não é um dever ou obrigação. É uma ferramenta que permite às mulheres dar a conhecer quais são as suas preferências de parto.
| O que deve conter um plano de parto?
CS | Existem várias formas de elaborar um plano de parto, e a criatividade tem-se refletido nos planos de parto que encontramos online. Resumidamente, o plano de parto pode estar dividido em três partes: trabalho de parto ativo, expulsão e dequitadura (nascimento da placenta). Nesta última, é normal agrupar todos os cuidados neonatais que se pretendem ou não pretendem realizar.
| Como apresentar um plano de parto junto dos profissionais de saúde, nomeadamente nos casos em que a mulher é redireccionada para uma instituição de saúde onde não foi seguida durante a gravidez?
CS | Algumas unidades de saúde têm conseguido estar à altura da demanda recente das mulheres grávidas e já elaboram consultas de plano de parto. É ainda uma situação de exceção, mas existe. Quando tal não é possível, o plano de parto deve estar bem visível na pasta da grávida (onde se encontram todos os exames e ficheiros relevantes) e o acompanhante presente pode sinalizar a existência do plano de parto. Temos que considerar que os hospitais têm protocolos próprios, e pode haver maior ou menor aceitação para o plano de parto, pelo que tudo o que possa ser abordado antes do parto, junto à unidade hospitalar, pode facilitar bastante a abertura da comunicação necessária para que o parto ocorra serenamente e com respeito pela mulher.
|Hoje em dia, já se aborda sem tabus o tema da violência obstétrica. Como podemos efetivamente definir o conceito de violência obstétrica?
CS | O conceito de violência obstétrica (VO) pode ser definido pela ausência de uma palavra apenas: respeito. Todos e quaisquer atos que conduzam a sentimentos de humilhação, medo, vergonha, e menosprezo pelas questões que para aquela mulher são fundamentais são consideradas violência obstétrica. Violência obstétrica não é sinónimo de cesariana ou parto instrumentalizado, nem envolvem necessariamente uma agressão física, é ausência de respeito pelas opções daquela mulher. Existe a ideia preconcebida que quando usamos o termo violência obstétrica, nos estamos a referir a agressões físicas ou a existência de intervenção médica. A violência obstétrica é “apenas” o desrespeito pela mulher, não só durante o parto, mas também na gravidez e continua pelo pós-parto imediato.
| Existem circunstâncias em que os pressupostos de um plano de parto não são respeitados pelos profissionais de saúde? Que medidas é que a mulher poderá tomar para que a sua vontade seja respeitada e sem colocar em risco a saúde do bebé (sendo este um dos principais argumentos que os profissionais de saúde utilizam para justificar alguns procedimentos menos ortodoxos)?
CS | Situações dessas infelizmente costumam chegar à associação com maior frequência do que gostaríamos. Também temos que entender que há bastantes questões envolvidas, como falta de recursos humanos e, às vezes, até meios, e o parto não é de todo (ou não devia) ser um campo de batalha. Diria, talvez, que a informação prévia será o único trunfo a ser jogado, juntamente com a abertura de comunicação. Para isto ser possível, é extremamente importante que o casal saiba exatamente quais os seus direitos. A APDMGP disponibiliza formações para casais sobre direitos na gravidez e parto. Estas formações permitem à mulher (ou casal) saber quais os seus direitos, saber as situações a que se aplicam esses direitos, reconhecer a legislação portuguesa e claro que é uma ferramenta importante para a elaboração do plano de parto. Ter um plano de parto presente e bem estudado pelo acompanhante é uma enorme vantagem, que acaba por ser extremamente útil para evitar situações-limite.
| Como é que uma mulher em trabalho de parto (por vezes já cansada e sem forças) pode ativar os seus direitos, fazendo prevalecer a sua vontade (caso o PP não esteja a ser respeitado)?
CS | Entre todos os direitos da mulher, o crucial que normalmente quando não é respeitado é a presença de um acompanhante. A maioria das situações de violência que conhecemos e que chegam até à APDMGP acontecem precisamente quando a mulher está sozinha. A mulher não estará de todo em condições para lutar e defender os seus direitos e vontades, e portanto cabe ao acompanhante mediar as situações potencialmente agressoras. Isto pode não ser traduzido em agressão física, mas pode ser identificado por “bullying” que pode ter várias formas e nuances. Também temos que sublinhar que cada vez mais encontramos enfermeiros e médicos sensibilizados para estas questões, e já olham para a mulher como uma pessoa com preferências, que é capaz de tomar as suas decisões. No fundo, quanto mais abertura houver por parte dos profissionais de saúde para colaborar na elaboração do plano de parto menos frequentes vão ser estes testemunhos de VO.
| O que é que uma mulher deve aceitar como procedimento "normal" no trabalho de parto? E quais os procedimentos que não devem ser aceites em nenhuma circunstância? Ou seja, quais são os limites entre o que é razoável e o que é inaceitável?
CS | A 15 de fevereiro de 2018, a Organização Mundial de Saúde emitiu novas diretrizes para estabelecer padrões que reduzam intervenções desnecessárias na mulher. Este documento inclui 58 recomendações, e infelizmente sentimos que maioritariamente não estão implementadas na generalidade dos serviços prestados às mulheres.
Sendo 58 recomendações, vou apenas salientar os procedimentos mais comuns, não recomendados pela OMS; procedimentos levados a cabo sem consentimento informado; toque por rotina, negação de acompanhante; acelerar o trabalho de parto; rutura de membranas; manobra de kristeller; episiotomia; falta de liberdade de movimentos; soro intravenoso e inibição de comer/beber, insistência para aceitação de epidural (quando não solicitado). Há outras questões como o desrespeito pela privacidade da mulher, a linguagem utilizada, coações e ameaças. O limite define-se pela comunicação. Caso os profissionais de saúde sintam que algum procedimento pode ser vantajoso ou desvantajoso, deve haver uma conversa nesse sentido, deixando o ónus da tomada de decisão na mulher. O razoável é qualquer procedimento consentido pela mulher.
|Como deve uma mulher agir em caso de violência obstétrica e a quem se deve dirigir para formalizar uma queixa?
CS | Portugal não tem mecanismos próprios que possam ser acionados de forma eficaz nestas questões. É uma questão com a qual nos debatemos e procuramos ainda que sejam criados mecanismos eficientes. Na verdade, se a mulher tiver que acionar um mecanismo legal, será o mesmo que qualquer cidadão que tenha sofrido alguma ofensa à sua integridade física ou psicológica. O que em casos hospitalares se torna bastante complicado, uma vez que é difícil aceder a documentação ou provas evidentes sobre a violência exercida. Relembro que na maioria dos casos estas mulheres estão sozinhas! Infelizmente há muito poucos casos de violência obstétrica que tenham sido ganhos. Há também a questão financeira e a questão emocional. Sobre a primeira, a maioria das pessoas vítimas de VO não têm recursos financeiros para formalizar uma queixa. Sobre a segunda, muitas mulheres estão traumatizadas e em condições psicológicas precárias, optando por não tocar no assunto, evitando assim o sofrimento.
Portanto, diria que além da falta de mecanismos que possam formalizar queixas de violência obstétrica, há falta de acompanhamento psicológico cedido às vítimas (mães e pais). Neste momento, fora o cenário judicial, é apenas possível formalizar uma queixa no hospital onde ocorreu o caso de VO, encaminhar essa reclamação à Ordem dos Enfermeiros e à Ordem dos Médicos. A APDMGP tem uma linha de apoio que, no fundo, orienta as mulheres nos processos, explicando como podem obter determinados recursos e como podem proceder.
| De que forma a Associação ajuda as mulheres no pré-parto e no pós-parto? Como contactar a Associação para pedir ajuda?
CS | A APDMGP é uma jovem associação que tem vários meios de ação, mas o nosso foco é o acesso a informação. No nosso site podem encontrar exemplos de planos de parto, informação legal, informação sobre os profissionais de saúde que prestam assistência no parto domiciliar, relatórios e informações práticas.
Recentemente temos as formações APDMGP sobre os direitos na gravidez e parto, que incluem também direitos laborais e institucionais. Facilitamos também orientação perante quaisquer questões sobre a gravidez e o parto através da nossa linha de apoio.
Temos também os nossos membros, que são entidades/empresas ligadas à gravidez/pós-parto e apoiam a associação, ao mesmo tempo que facilitam o acesso a serviços/produtos aos nossos associados. Há ainda o nosso Facebook e Instagram onde partilhamos conteúdos que consideramos importantes para as mulheres e as suas famílias. Todo o trabalho desenvolvido na APDMGP é voluntário, e qualquer ajuda é bem-vinda, seja através de donativos ou adesões como sócios. Neste momento, a APDMGP tem uma petição pela possibilidade de termos casas de parto em Portugal. O link desta petição pode ser encontrado na bio do Instagram da associação.
Link para recomendações da OMS:
Contactos APDMGP
Instagram@apdmgp
Facebook.com/associacaogravidezeparto
Linha de apoio
Tlm: +351 926 657 394
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